A Importância do Brincar

“A infância é o chão sobre o qual caminhamos a vida inteira.” — Lya Luft Talvez não haja expressão mais precisa para

“A infância é o chão sobre o qual caminhamos a vida inteira.”
— Lya Luft

Talvez não haja expressão mais precisa para traduzir o que é a infância do que a citação acima: ela é base, solo, trajetória. E o brincar, como vivência que estrutura parte desse chão, sustenta muito mais do que apenas memórias dessa infância — sustenta afetos, vínculos e possibilidade de ser no mundo.

Brincar é uma linguagem. Uma forma de o sujeito experimentar o mundo e a si mesmo. Para a criança, é também o principal meio de elaborar sentimentos, desenvolver habilidades cognitivas, motoras, sociais e emocionais. Esta importante prática é também reconhecida como um direito fundamental pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelo próprio Conselho Federal de Psicologia (CFP) que, inclusive, destaca o brincar como eixo central na escuta de crianças na clínica, em ambientes escolares e em políticas públicas.
Mas, então, por que ainda vemos o brincar como perda de tempo? Por que permitimos que ele vá se esvaindo conforme crescemos? Apesar de toda essa potência, percebe-se como presenciamos uma espécie de “crise” do brincar.

Em um mundo hiperconectado, competitivo e que cultua a produtividade, o brincar vem sendo sufocado pela agenda lotada, pelas telas em excesso e por um ideal de infância “eficiente”. Crianças, cada vez mais novas, são privadas de tempo livre, das ruas, do pisar descalço na grama, do tédio criativo — e, no lugar disso, recebem cronogramas intensos de cursos, tarefas e atividades (é balé, é futebol, é aula, é natação, é redação, é basquete, é inglês… E a lista nunca acaba).

Esse cenário é denunciado com sensibilidade no documentário Tarja Branca (2014), que propõe o brincar como antídoto natural ao adoecimento coletivo. A metáfora do “remédio tarja branca” traz contraponto para com medicamentos controlados “tarja preta”, ou seja, aqueles que carregam maiores riscos (como dependência química e/ou efeitos colaterais mais intensos). Nessa linha de raciocínio, nos é revelado: brincar, seja na infância ou não, é cura, é pausa, é reencontro com a espontaneidade, com a leveza, e com aquilo que nos humaniza.
Talvez o maior mito sobre o brincar seja este: que ele pertence exclusivamente à infância. As brincadeiras podem e devem, na realidade, acompanhar o sujeito em todas as fases da vida. Seja através da arte, do humor, da dança, do improviso, do jogo, do devaneio — pois brincar é viver com flexibilidade e imaginação.

Na clínica psicológica, por exemplo, é comum que adultos redescubram o brincar como forma de cuidado. Resgatar esse espaço lúdico — muitas vezes silenciado pela rigidez da vida adulta — permite elaborar experiências, acessar memórias e recuperar o prazer de existir.
A dimensão lúdica, portanto, se mantém essencial. A espontaneidade na fala, o uso de metáforas, os exercícios de imaginação e até o humor sensível são caminhos terapêuticos que, de certo modo, tocam o brincar na sua essência.

Por isso, brincar é urgente.
É pausa num mundo que gira rápido demais.
É e sempre será atual.
E é para todos — independentemente da idade.

Que possamos, por fim, criar espaços para o brincar no nosso dia a dia, nas escolas, nas casas, nos consultórios, nas praças. Que possamos brincar com os filhos, com os pais, com os amigos, com os pacientes — e, principalmente, com nós mesmos. Afinal, brincar é, também, uma forma de ser e de continuar vivendo.

Por Maria Laura Rastelli Rangel

Referências
Brasil. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Brasília, DF. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
Conselho Federal de Psicologia. (2022). Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) com crianças e adolescentes. Brasília, DF. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2022/03/referencias-tecnicas-criancas-e-adolescentes.pdf
Luft, L. (2003). Perdas e ganhos. Editora Record.
Rhoden, C. (Diretor). (2014). Tarja Branca: A revolução que faltava [Filme-documentário]. Maria Farinha Filmes.

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